A ressurreição como sanção

O mundo jurídico e o Direito, de um modo geral, são baseados na ideia de normas, de regras de comportamento, estabelecendo condutas permitidas, proibidas e obrigatórias. Essa moldura do comportamento, o que se deve ou não fazer, é o que se denomina regra primária, que dirige a ação humana imediata.

Todavia, como não existe uma adesão completa e total às normas, o que é natural, resultado do livre-arbítrio e da liberdade, não é incomum ocorrer a violação à norma estabelecida, atraindo a aplicação de uma regra secundária, que é a sanção pelo comportamento desviante.

Essa é a perspectiva positivista, em que a norma é aquela estabelecida pelo Estado, de modo que é uma expressão formal do poder político. Daí, a sanção ser entendida como uma punição, uma resposta estatal ao comportamento desviante, não havendo verdade ou realidade natural na sanção, apenas sua formalidade jurídica.

Atualmente é possível falar em sanção premial, quando a norma pretende estimular um determinado comportamento, porque benéfico para a sociedade, de modo que aquele que cumpre a norma, notadamente a que exige um maior esforço para seu atendimento, recebe algum tipo de benefício, como o desconto pelo pagamento antecipado de um tributo, por exemplo.

De uma perspectiva jusnaturalista, o Direito é a declaração de uma relação com o mundo real, regido por leis naturais. Há critérios objetivos justiça.

“A lei, ou para nossos fins, o texto da lei, tem como função declarar o justo ou o devido. Ou seja, seu significado é uma regra ou norma, e sua designação é uma relação: ‘a justiça consiste em uma relação’. A justiça é uma relação entre pessoas, mediada por atos, os atos devidos. (…)

Deste modo, a regra jurídica, como medida, tem seu caráter objetivo garantido por sua referência a uma realidade – uma relação entre as pessoas. Essa referência é mediada pela significação. O critério da ‘boa interpretação’ é a captação da realidade comunicada pela função significativa do texto normativo. A regra só funciona se medir algo para além dela. Uma interpretação que se identifique com a lei faz com que a lei seja autorreferente, perdendo seu caráter de medida e, portanto, sua razão de lei” (Luis Fernando Barzotto. Filosofia do direito: os conceitos fundamentais e a tradição jusnaturalista. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, pp. 133-134)

O autor citado adota uma filosofia realista, no sentido de que os enunciados se referem ao mundo real, há uma relação entre a asserção e um estado de coisas do mundo. Há objetividade, sendo objetivo o que é determinado pelo objeto; em contraposição à subjetividade, em que o subjetivo é determinado pelo sujeito.

A teoria realista referendada pelo autor sustenta que a objetividade da lei e a racionalidade da atividade são dadas pela referência à realidade, porque “o que dá objetividade a uma medida é a própria realidade” (Idem, p. 133).

Sobre a finalidade das leis, ainda que possam existir objetivos como arrecadação, segurança, crescimento econômico, sustenta o autor que, na tradição clássica, “o sentido, a finalidade última da lei é promover a coexistência”, o que era chamado de amizade na filosofia de Aristóteles (Idem, p. 145).

Para além do mundo grego, havia a ideia de lei do povo hebreu, em que as normas eram dadas por Deus, e se referia ao conteúdo da aliança, com o objetivo de promover a amizade entre Deus e a humanidade.

“As dez palavras, que constituem a torá, a Lei, são expressões da aliança, de tal modo que a Lei nada mais é do que a tradução prática da aliança. (…)

Como ensino, a torá é antes a manifestação de uma verdade do que uma imposição de um preceito. A verdade, na tradição clássica, é o fundamento do bem” (Idem, pp. 147-148).

Jesus Cristo, o Messias judeu, pleno cumpridor da Lei, não por acaso declarou ser a Verdade, porque havia uma correspondência entre suas ações e o cumprimento da aliança, sendo que por ele foi formada a nova aliança, que alcançou toda a humanidade, superando a aliança estrita anterior com os filhos de Israel.

Barzotto alega que, para o jusnaturalismo, o ser humano possui uma natureza que lhe é própria, e isso está de acordo com a realidade.

Transpondo para a visão hebraica, de Jesus, essa natureza e essa realidade incluem um momento futuro de existência, representado pela ressurreição. Assim, a Lei, a Torá, não é apenas uma lei humana, mas o comando divino para a vida boa, para a boa ressurreição, para o Bem e para a Verdade.

A norma primária sendo bem cumprida levará a uma ressurreição de vida, caso contrário, será um julgamento. O cumprimento da norma e sua violação acarretam uma sanção. Em qualquer caso, pois, haverá sanção, que poderá ser premial ou punitiva.

Não vos admireis com isto: vem a hora em que todos os que repousam nos sepulcros ouvirão a sua voz e sairão; os que tiverem feito o bem, para uma ressurreição de vida; os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de julgamento. Por mim mesmo, nada posso fazer: eu julgo segundo o que ouço, e meu julgamento é justo, porque não procuro a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (Jo 5, 28-30).

A ressurreição, assim, é uma consequência natural da vida humana, faz parte da natureza humana, da realidade futura, de justos e injustos. Não é algo meramente subjetivo, ligado à pessoa individual de Jesus, mas à própria Verdade, ao Bem último destinado por Deus a todos nós.

E tenho em Deus a esperança, que também eles acalentam, de que há de acontecer a ressurreição, tanto de justos como de injustos” (At 24, 15).

O apóstolo Paulo deixa bem claro que o fato da realidade chamado ressurreição é fundamental para a crença cristã, pois sem este fato a fé de Cristo não existe.

Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé; ainda estais nos vossos pecados. Por conseguinte, aqueles que adormeceram em Cristo estão perdidos. Se temos esperança em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram” (1 Cor 15, 16-20).

Se a ressurreição é um fato da realidade, deve orientar a elaboração da lei, declarando o justo e o injusto, tendo como parâmetro a Torá, na interpretação do Messias, Jesus. Indispensável que tal fato seja considerado na objetividade normativa, que é vinculada à subjetividade de Jesus.

A ressurreição de Jesus, em si, já é uma medida da verdade de suas palavras, que as torna vinculadas à realidade, dão-lhe objetividade.

Não apenas Jesus é medida da ressurreição, mas todas as pessoas, o que decorre do próprio mandamento dado por Cristo, de amar a Deus e ao próximo, porque se a justiça é uma relação entre pessoas, mediada por atos, os atos devidos, o critério da ressurreição de vida ou de julgamento decorre das relações que temos com os outros, com os atos devidos ou indevidos praticados a favor e contra nossos irmãos, decorre de como viemos nossa coexistência humana.

A boa interpretação do Cristianismo é, portanto, também uma interpretação jurídica, inclui a exigência que ele submeta todo Principado, toda Autoridade, todo Poder, político, jurídico, social e religioso.

Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído será a Morte, pois ele tudo colocou debaixo dos pés dele. Mas, quando ele disser: ‘Tudo está submetido’, evidentemente excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu. E, quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15, 25-28).

A ressurreição, pois, é uma necessidade jurídica e filosófica, amparada na realidade segundo a qual tudo pertence a Deus, por isso Ele deve ser tudo em todos, com boa ou má sanção, a depender da relação que tivemos com Ele e nossos irmãos.

David Bohm e o erro do atomismo mental

Assistindo ao vídeo “Ned Block – What is the Mind-Body Problem?” (https://www.youtube.com/watch?v=6jvISYC5xvM), atentei-me para um problema fundamental do atomismo mental, que é analisar o problema corpo-mente em termos reducionistas, deixando de lado a realidade segundo a qual a física é entendida, por meio de campos, que vai muito além do mero materialismo atomista, este que compreende as coisas como feitas por blocos individuais, formando unidades maiores independentes. Não que o entrevistado seja propriamente materialista, mas a visão exposta carece de profundidade espiritual.

Associar a consciência e a mente apenas ao cérebro é ignorar a unidade fundamental da realidade, que existe em campos que interagem uns com os outros. As partículas não podem ser interpretadas de forma atomística, isto é, isoladas dos seus respectivos contextos mais amplos.

Não basta compreender o funcionamento do cérebro para entender a mente, pois esta é mais do que aquele. Ainda que, no indivíduo, o processo mental esteja associado ao nível cerebral, até certo ponto, o próprio indivíduo não é algo isolado do mundo, é formado em um contexto tanto físico/biológico como simbólico, e nos dois casos a interpretação atomística é insuficiente para a compreensão da mente.

O cérebro é um órgão do corpo, que possui outros membros, estando inserido em uma comunidade, que vê o mundo de determinada forma, pelo que a mente é dependente não apenas do que está no interior do indivíduo, mas também daquilo que o envolve, na sua interação e participação com o meio, com seu entorno.

É possível pressupor que o próprio desenvolvimento cerebral será distinto a depender da cultura em que estiver inserido e de sua interpretação do mundo, permitindo que determinados conceitos ou ideias sejam percebidos, ativando uns ou outros circuitos cerebrais.

Seguindo a visão de David Bohm, que vê a realidade manifesta como expressão de uma ordem interna, a ordem implicada, segundo a qual cada coisa está internamente relacionada com todas as demais, com a totalidade do universo, pelo que as coisas externas são apenas relativamente independente, conclui-se que tal interdependência também vale para a mente, e assim para pensamentos, sentimentos, desejos e impulsos, os quais fluem dos uns dos outros, e da própria matéria.

“This means that utimaltely mind and matter are at least closely analogous and not nearly so different as they appear on superficial examination. Therefore, it seems reasonable to go further and suggest that the implicate order may serve as a means of expressing consistently the actual relationship between mind and matter, without introducing something like the Cartesian duality between them.” (Isso significa que mente e matéria são, em última análise, intimamente análogas e não tão diferentes quanto parecem em um exame superficial. Portanto, parece razoável ir além e sugerir que a ordem implicada pode servir como um meio de expressar consistentemente a relação real entre mente e matéria, sem introduzir algo como a dualidade cartesiana entre eles – David Bohm. A new theory of the relationship of mind and matter. In Philosophical Psychology, Vol. 3, n.º 2, 1990 – https://casinoqmc.net/local_papers/bohm_mind_matter_1990.pdf).

O autor sustenta que todas as coisas estão sujeitas à dualidade onda-partícula, como explicitado pela física quântica, de modo que a interação entre partículas envolve uma indivisibilidade, uma totalidade específica. Como em larga escala o número de ligações é tão grande, os processos podem ser tratados com algum grau de divisibilidade, mas isso é apenas uma aproximação.

Além disso, destaca que a não localidade é uma propriedade da realidade, e que mesmo em larga escala algumas partículas, ainda que distantes umas das outras, comportam-se como se fossem uma só, como demonstrado pelo teorema de Bell. Essas interações não locais são estranhas ao paradigma newtoniano e mesmo às concepções materialistas de mudo, que entendem as coisas formadas atomisticamente, a partir dos blocos básicos, os átomos, unidos apenas localmente.

“All of this can be summed up in terms of a new notion of quantum wholeness, which implies that the world cannot be analyzed into independently and separately existent parts” (Tudo isso pode ser resumido em termos de uma nova noção de totalidade quântica, o que implica que o mundo não pode ser analisado a partir de partes independentes e separadas – Idem).

Essa é uma clara crítica à visão atomista da realidade, que analisa as coisas do mundo em termos independentes e separados.

Segundo Bohm, o campo quântico pode ser representado como o que chama de potencial quântico, que depende apenas da forma, e não da intensidade do campo quântico. A forma, assim, diz respeito à totalidade presente no campo, que é muito mais do que a soma de suas partes, pois essa forma já possui determinadas qualidades, ligadas ao todo a que pertencem. Desse modo, mesmo campos muitos fracos podem afetar fortemente a partícula.

Entendo que isso vale para a mente, em que determinados conceitos, ainda que sutis, podem estar presentes em determinadas realidades, expressando o que muitas vezes é dito sobre a realidade espiritual, mas que significa exatamente a totalidade presente naquele momento, inclusive as formais totais sutis que permitem a compreensão do fenômeno. Bohm não usa exatamente a palavra “espiritual”, mas essa relação não pode ser excluída.

Talvez se possa dizer que essa questão espiritual diga respeito ao que Bohm chama de informação ativa presente no campo quântico, que dá forma, ou contexto, a determinada realidade. Explicando a informação ativa, ele dá o exemplo de um navio sendo controlado por controle remoto, as ondas de rádio ou mesmo como a forma como DNA contribui na síntese de proteínas.

“Our proposal is then to extend this notion of active information to matter at the quantum level. The information in the quantum level is potentially active everywhere, but actually active only where the particle is (as, for example, the radio wave is active where the receiver is). Such a notion suggests, however, that the electron may be much more complex than we thought (having a structure of a complexity that is perhaps comparable, for example, to that of a simple guidance mechanism such as an automatic pilot). This suggestion goes against the whole tradition of physics over the past few centuries which is committed to the assumption that as we analyze matter into smaller and smaller parts, their behaviour grows simpler and simpler” (Nossa proposta é, então, estender essa noção de informação ativa à matéria no nível quântico. A informação no nível quântico é potencialmente ativa em qualquer lugar, mas realmente ativa apenas onde a partícula está (como, por exemplo, a onda de rádio está ativo onde o receptor está). Tal noção sugere, no entanto, que o elétron pode ser muito mais complexo do que pensávamos (tendo uma estrutura de complexidade que talvez seja comparável, por exemplo, a um mecanismo de orientação simples como um piloto automático). Esta sugestão vai contra toda a tradição de física ao longo dos últimos séculos, que está comprometida com a suposição de que, ao analisarmos a matéria em partes cada vez menores, seu comportamento se tornará cada vez mais simples – Idem).

A perspectiva a ser adotada, portanto, é a da totalidade, pela qual a interação entre as partículas deve ser vista como dependente de um grupo comum de informações pertencentes ao sistema como um todo, de modo que não pode ser analisada apenas em termos de relações predeterminadas entre partículas individuais. Bohm dá o exemplo da supercondutividade, fazendo analogia, ainda, com a dança de balé, em que os dançarinos são guiados por um conjunto comum de informações, que envolve uma totalidade.

A totalidade, assim, tem significado objetivo, em que a realidade se comporta mais como um organismo do que como uma máquina, dizendo que, aprofundando a questão, a própria noção de informação ativa sugere a matéria como tendo um comportamento rudimentar semelhante à mente, em que a forma é essencial, da mesma forma que ocorre quando lemos um jornal, em que o que nos chama a atenção são as formas das letras, que carregam a informação, e não a substância do papel.

Passando ao processo do pensamento, o autor salienta que também é dependente da informação ativa, em que o contexto é determinante para a formação das ideias, de modo que as informações prévias podem condicionar o modo pelo qual as apreendemos e as estruturamos em um significado.

“It seems clear from all this that at least in the context of the processes of thought, there is a kind of active information that is simultaneously physical and mental in nature. Active information can thus serve as a kind of link or ‘bridge’ between these two sides of reality as a whole” (Parece claro por tudo isso que, pelo menos no contexto dos processos de pensamento, há um tipo de informação ativa que é simultaneamente física e de natureza mental. A informação ativa pode, portanto, servir como uma espécie de link ou ‘ponte’ entre esses dois lados da realidade como um todo – Idem).

Nosso pensamento pode conter uma variedade de informações de diferentes tipos, com níveis sutis que indiquem um todo maior, e que prenunciam outro maior. Essas redes sutis, assim, apontam para a interconexão entre os eventos, para a ordem implicada, na qual temos uma série de níveis inter-relacionados em que os mais sutis desdobram e envolvem aqueles que são menos sutis, e nestas séries o lado mental corresponde ao que é mais sutil e o físico ao que é menos sutil, e o lado mental se torna físico à medida que avançamos para níveis maiores de sutileza (In this series, the mental side corresponds, of course, to what is more subtle and the physical side to what is less subtle. And each mental side in turn becomes a physical side as we move in the direction of greater subtlety – Idem).

“For the human being, all of this implies a thoroughgoing wholeness, in which mental and physical sides participate very closely in each other. Likewise, intellect, emotion, and the whole state of the body are in a similar flux of fundamental participation. Thus, there is no real division between mind and matter, psyche and soma” (Para o ser humano, tudo isso implica uma totalidade profunda, na qual os lados mental e físico participam intimamente um do outro. Da mesma forma, intelecto, emoção, e todo o estado do corpo estão em um fluxo semelhante de participação. Assim, não há divisão real entre mente e matéria, psique e soma – Idem).

Finalmente, ele destaca a ideia de uma mente coletiva, algo que não é concebível pelo atomismo mental, que pensa exatamente o indivíduo como um átomo, ao invés de compreendê-lo como membro de um corpo maior, quase espiritual.

“Extending this view, we see that each human being similarly participates in an inseparable way in society and in the planet as a whole. What may be suggested further is that such participation goes on to a greater collective mind, and perhaps ultimately to some yet more comprehensive mind in principle capable of going indefinitely beyond even the human species as a whole” (Ampliando essa visão, vemos que cada ser humano participa de forma semelhante em uma forma indissociável na sociedade e no planeta como um todo. O que pode ser sugerido além disso, essa participação prossegue para uma mente coletiva maior, e talvez em última análise, para alguma mente ainda mais abrangente, em princípio, capaz de ir indefinidamente além da espécie humana como um todo – Idem).

A realidade mais profunda, assim, é algo além de mente ou matéria, que são apenas aspectos que nos ajudam a analisar o mundo.

Não é difícil associar as ideias do autor e de sua mente coletiva ao conceito do Deus do Monoteísmo, em suas acepções de Espírito, Logos ou Sabedoria do qual participamos, e que está além de nós (alguma mente ainda mais abrangente, em princípio, capaz de ir indefinidamente além da espécie humana como um todo).

O que deve ser destacado, enfim, é sua visão geral de mundo, fundada em seu profundo conhecimento da realidade física, rejeitando as concepções básicas do atomismo, tanto físico como mental, apontando para a interconexão entre todas as coisas e, como consequência lógica, para um mundo de tipo espiritual, subjacente aos processos mentais e a tudo o que existe.

Ayka, uma criatura divina

Deus é amor, e onde o amor verdadeiro se manifesta, ali Ele está.

Assim, a querida Ayka foi uma das formas pelas quais Deus me amou, dando-me um presente, uma dádiva, nos últimos dez anos, que hoje, contudo, porque muito amada, e porque também muito amou, deixa muita tristeza.

As perdas humanas são indizíveis, mas também a da Ayka o é, porque era uma parte diária da minha vida, o primeiro compromisso de todos os dias, de levá-la à rua, assim como o da volta do trabalho. Uma grande amiga, um grande amor, uma pequena grande parte de mim se foi.

Assim, era um compromisso prazeroso, de amor, de participação. Hoje, o Prince tem uma nova velha companhia; receba-a bem, amigo fiel.

O Mestre afirmou que os mansos herdarão a terra, e porque está prevista uma nova criação, um novo céu e uma nova terra, e como a terra é a habitação não só dos humanos, como também dos animais, penso que é correto presumir que também estes lá viverão, na nova criação, e como a Ayka é, talvez, o ente mais manso que já conheci, ela estará comigo, caso eu lá esteja. Conto com isso. Deus é bom, minha fé num Deus bom me permite, pois, crer nessa realidade.

A promessa, já realizada no mundo celestial, é: “Eis que eu faço novas todas as coisas” (Ap 21, 5).

Ele, que é fiel, promete que todas as coisas serão feitas novas, haverá um novo céu e uma nova terra, pelo que, dentre todas as coisas que serão feitas novas, a Ayka estará incluída, porque mansa, porque amada, porque uma criatura divina.

Adeus, querida; adeus, Kikita!

Nem-nem

O pensamento Cristão não é de esquerda ou de direita, é nem-nem.

Usar as categorias direita e esquerda, do ponto de vista do Cristianismo, é incidir em erro categorial, fato muito comum nos tempos modernos, em que as principais formas de pensamento padecem de inconsistências orgânicas e referenciais.

Nossa análise racional do mundo pressupõe a existência de categorias, que são formas racionais pelas quais medimos as coisas e acontecimentos, são instrumentos da inteligência para a apreensão do mundo, ou melhor, de aspectos do mundo que são destacados da totalidade existencial para um estudo específico e aprimorado daquele âmbito cognitivo. A especialização científica levou ao desenvolvimento de diversas categorias próprias, nos distintos ramos de atividades, permitindo detalhar os mais variados fenômenos da realidade, físicos, biológicos, sociológicos, jurídicos, religiosos etc.

O problema surgido desse desenvolvimento foi a perda do sentido de totalidade intelectual, na medida em que os saberes especializados passaram a abordar áreas cada vez mais isoladas da realidade, perdendo, em muitos casos, o contato com o mundo da vida, em sua complexidade e interconectividade, com a Religião.

A disputa política recente, o que vale para os âmbitos local e planetário, é um exemplo claro dessa ramificação cognitiva, em que cada lado somente consegue enxergar os defeitos dos opositores, ignorando, deliberadamente, ou não, os próprios. Uma das causas de tal situação é aquela ramificação cognitiva que impede sejam formuladas teorias mais abrangentes da realidade social, que incluam, especialmente, o componente religioso e o mundo espiritual, aspectos que, como regra, são, de plano, a priori, excluídos do debate científico, ou classificados como subjetivos ou com algum adjetivo intelectualmente depreciativo.

Um lado da disputa política está associada ao conservadorismo religioso, defendendo uma moralidade mais estrita, com os chamados costumes tradicionais, o que está, em meu ponto de vista, certíssimo, se amparado na mensagem de Cristo, em sua integralidade, moral e social. A outra vertente, por sua vez, tem o amparo de uma versão da chamada teologia da libertação, segundo a qual a questão social é fundamental, devendo ser dada a devida atenção aos excluídos e marginalizados, o que está, em meu ponto de vista, certíssimo, se amparado na mensagem de Cristo, em sua integralidade, moral e social.

A única forma de superar o impasse é exigir a coerência filosófica de ambos os lados, para que os valores comuns sejam destacados, notadamente quanto às suas origens cristãs, permitindo uma racionalidade comum que possibilite o desenvolvimento de argumentos sólidos capazes de convencer gregos e troianos, liberais e conservadores, direitistas e esquerdistas, judeus e muçulmanos (o raciocínio deve ser expandido, mas vale para eles também), que compartilhem aqueles valores comuns presentes no Evangelho de Jesus Cristo, que veio confirmar a Lei e os Profetas. O componente teológico sempre permitirá o surgimento de desavenças, mas na medida em que sejam adotados princípios e objetivos comuns, estes servirão para pautar o debate e impedir que o conflite passe ao plano de filigranas metafísicas praticamente insolúveis, casos para os quais a tolerância religiosa é indispensável.

De todo modo, um ponto inicial é adotar uma posição sobre o que significa ser Cristão, qual a natureza humana, que valores definem o que é de Cristo e humano e o que é do anticristo e bestial, o que é bom e deve ser estimulado e o que é mau e deve ser evitado, e criminalizado. Cristo e anticristo são categorias políticas fundamentais, incluindo o compromisso com a Verdade, filosófica e teológica, e as ações, públicas e privadas, condizentes com esse compromisso. Esse critério já permite concluir que os anticristos dominam a cena política.

Na palestra “Intolerância laicista e o bem comum da religião” (https://www.youtube.com/watch?v=vZyX_XItxo8&t=746s), Victor Sales Pinheiro destaca que o homem é um animal social racional, possuindo bens humanos básicos associados à sua natureza, como a vida, a saúde, a moradia, a sociabilidade, a experiência de beleza e conhecimento, incluída a especulação religiosa, e a razoabilidade prática.

A teoria política tem como uma de suas funções o debate público acerca de quais são esses bens, como devem ser alcançados, protegidos e distribuídos na sociedade, sendo uma questão fundamental para toda sociedade organizada. Não é por acaso que Aristóteles definia o homem como um animal político, zoon politikon.

A política está indissociavelmente ligada à religião, definida na palestra como “qualquer questionamento metafísico sobre a ordem da realidade”, que todo homem pode alcançar. Os bens humanos básicos devem ser promovidos pela comunidade, como a vida e o conhecimento, ainda que muitas pessoas continuem morrendo e sendo ignorantes, o que não leva ao fim da promoção de tais bens.

Seguindo, ao citar a obra de Finnis e a lei natural, Victor Sales Pinheiro destaca a necessidade de que a ação ética razoável inclua o bem comum, que é um critério tanto ético como jurídico, dentro da teoria da lei natural, que legitima a justiça da política. Da perspectiva do jusnaturalismo, não há separação entre questões morais e questões jurídicas, porque tratam dos mesmos temas.

Nesse ponto, a discussão política deve, necessariamente, debater temas religiosos, que são igualmente morais, porque dizem respeito a concepções de bem comum em disputa, e também à ordem da própria realidade, que será conduzida e transformada pelos agentes do Estado. Os agentes políticos são agentes (i)morais.

Da perspectiva Cristã, tenho sustentado a “Política como Teologia” (https://holonomia.com/2021/03/07/politica-com-teologia/, https://holonomia.com/2021/03/14/politica-como-teologia-parte-ii/, https://holonomia.com/2021/03/28/politica-como-teologia-parte-iii/), porque na medida em que a discussão envolve o que seja o bem comum, e sobre como o poder deve ser exercido para sua promoção, os valores mais elevados da comunidade sempre estão em disputa, o que inclui a própria noção de ordem, ou desordem, da realidade, porque haverá uma ordem fundada na realidade espiritual, segundo a perspectiva Cristã, ou uma ordem aparente, baseada na pura sorte, conforme o entendimento materialista de mundo, que, de fato, e de direito, em última instância, é amparado, por mais que isso soe absurdo, numa pretensa desordem do mundo. Além disso, a conduta daqueles que sustentam determinadas ideias deve ser compatível com tais ideias, é indispensável a coerência moral, ética e jurídica na ação pública dos agentes políticos, que são também agentes morais e religiosos.

Nesse sentido, a definição da natureza humana, a partir de quando a vida deve ser protegida, como devemos nos portar em comunidade, que espécie de beleza devemos considerar expressão artística, especialmente aquelas passíveis de exibição a crianças e adolescentes, são pontos essenciais do debate político e que não possuem uma resposta propriamente científica, da perspectiva do que hoje é concebido como tal, sendo esta resposta dependente exatamente da concepção da ordem de mundo, da ordem da realidade, ou de sua inexistência. Se a comunidade científica não responde a tais indagações, porque há uma limitação epistemológica impedindo que o faça, isso não impede que tais temas sejam debatidos do ponto de vista da racionalidade filosófica, na verdade exige que o sejam. O que não pode ser aceita é a imposição unilateral e acrítica da visão de mundo dos que acreditam no Caos, que é incompatível com o que pensam todos aqueles que acreditam no Cosmos, no que se incluem Judeus, Cristãos e Muçulmanos, a maioria absoluta da população mundial.

Assim, existe um problema na discussão política, de primeira grandeza, que é exatamente a natureza do debate e o que nele deve estar incluído, a discussão sobre a existência de ordem do mundo e que como isso se reflete na comunidade humana, e que valores ou bens humanos dizem respeito a essa ordem.

Não menos importante, e de similar grandeza, por outro lado, é a flagrante falta de compromisso com a Verdade e com a Justiça, nos discursos e ações dominantes no debate público contemporâneo, que segue a lógica maquiavélica, que é anticristã. Tecnicamente, desde o tempo de Cristo, o ambiente político é anticristão, reinando o que a Bíblica chama de bestas e monstros, amparados por falsos profetas, os pseudocientistas que negam a verdade religiosa e defendem que o mundo é regido pelo acaso. Em outros termos, vivemos a ditadura da inconsistência filosófica, da incoerência.

Se já é difícil chegar a um consenso quando as premissas do diálogo racional pecam por irracionalidade categorial, a partir do momento em que a hipocrisia é dominante nas ações das personagens principais dos agrupamentos políticos, e nem um lado e nem o outro, ambos com argumentos defensáveis, caso contrário não angariariam tantos adeptos, e desprezíveis, o que é evidente, aceita o escrutínio da Verdade, as perspectivas a curto prazo ficam seriamente comprometidas.

Contudo, a tribulação é necessária, antes que a Verdade de Cristo seja manifestada, em seu ambiente próprio, a Política, que é também a Teologia, porque é a essas categorias que se refere o Cristianismo, nem a uma nem à outra, mas a ambas, e enquanto elas estiverem separadas, tanto na teoria como na prática, os falsos messias e falsos profetas continuarão enganando a muitos.

E se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma vida se salvaria. Mas, por causa dos eleitos, aqueles dias serão abreviados. Então, se alguém vos disser: ‘Olha o Cristo aqui!’ ou ‘ali!’, não creiais. Pois hão de surgir falsos Cristos e falsos profetas, que apresentarão grandes sinais e prodígios de modo a enganar, se possível, até mesmo os eleitos. Eis que eu vo-lo predisse.

Se, portanto, vos disserem: ‘Ei-lo no deserto’, não vades até lá; ‘Ei-lo em lugares retirados’, não creiais. Pois assim como o relâmpago parte do oriente e brilha até o poente, assim será a vinda do Filho do Homem. Onde estiver o cadáver, aí se ajuntarão os abutres.

Logo após a tribulação daqueles dias, o sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas cairão do céu e os poderes dos céus serão abalados. Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem e todas as tribos da terra baterão no peito e verão o Filho do Homem vindo sobre as nuvens do céu com poder e grande glória. Ele enviará os seus anjos que, ao som da grande trombeta, reunirão os seus eleitos dos quatro ventos, de uma extremidade até a outra extremidade do céu.

Aprendei da figueira esta parábola: quando o seu ramo se torna tenro e as suas folhas começam a brotar, sabeis que o verão está próximo. Da mesma forma também vós, quando virdes todas essas coisas, sabei que ele está próximo, às portas” (Mt 24, 22-33).

Tu vens, tu vens

Eu já escuto os teus sinais

Monoteísmo como condição da Ciência

Assistindo a uns vídeos sobre a história das religiões, produzidos por Leandro Karnal, em que pesem as profundas divergências teóricas entre meu pensamento e o dele, reafirmei meu entendimento sobre a indispensabilidade histórica do pensamento religioso monoteísta, e da Teologia, para o desenvolvimento da Ciência, tal como a conhecemos, apesar da publicidade em sentido contrário produzida por muitos pretensos cientistas, pela chamada academia, em geral.

Explicando a criação do mundo pelo Deus da Bíblia, o historiador mostra a distinção entre o pensamento monoteísta e aquele da religião grega e das religiões indígenas da América, porque apenas no Monoteísmo há um Deus que preexiste a tudo, e é anterior ao tempo e ao espaço, que deu origem ao mundo (https://www.youtube.com/watch?v=CztqsoWZOQU).

Do ponto de vista cosmológico, e ao contrário do que pensavam os gregos, a ideia de que o mundo teve um início está associado à religião do Deus único, e a revelação do Big Bang, no século XX, decorreu da proposta do sacerdote católico belga Georges Lemaître, fazendo com que Einstein depois mudasse um detalhe de sua concepção científica.

A opção moderna é o deus multiverso, anterior ao tempo e ao espaço, que teria criado o nosso mundo, o que é a crença de muitos cientistas da teologia materialista, do ateísmo, e é uma crença muito pior que a dos Cristãos, pois materialismo é baseado exclusivamente na fé, enquanto o Cristianismo tem, a seu favor, além da história da Ciência, o testemunho dos primeiros cristãos, e também de outros, que vivenciaram a encarnação do Logos.

Mesmo entre os gregos, Aristóteles, que foi um grande investigador científico, tendo pesquisado o mundo natural em vários aspectos, pressupunha um “motor imóvel” a movimentar todo universo.

“Visto que há uma ciência independente do ser como ser, é necessário que investiguemos se esta deve ser considerada idêntica à ciência natural ou, ao contrário, um ramo distinto de conhecimento. A física ocupa-se de coisas que encerram uma fonte de movimento em si mesmas; as matemáticas são especulativas, sendo ciências que se ocupam de coisas permanentes, mas não com coisas que são capazes de existir separadamente. Há, portanto, uma ciência distinta de ambas, a qual se ocupa daquilo que existe separadamente e é imóvel, isto é, se efetivamente houver uma substância deste tipo, quero dizer: que tenha existência independente e seja imóvel, como nos empenharemos em demonstrar que há. E se houver uma coisa desse jaez no mundo, aqui certamente deve estar o divino, e este tem que ser o princípio primeiro e o mais fundamental. Fica evidente, portanto, que há três tipos de ciência especulativa: a física, as matemáticas e a teologia. A melhor das classes de ciências é a especulativa, e, entre as próprias ciências especulativas, a melhor é a que nomeamos por último, porque ela trata do mais importante aspecto da realidade.” (Aristóteles. Metafísica. Trad. Edson Bini. 2 ed. São Paulo: EDIPRO, 2012, p. 282).

Em Aristóteles, portanto, havia um princípio primeiro, mais fundamental, associado à esfera divina, às coisas eternas e imóveis, sendo a melhor ciência aquela que trata desse assunto, o mais importante aspecto da realidade.

Aristóteles possuía uma ideia teológica de mundo, e não é por acaso que o mundo islâmico preservou suas obras, as quais depois reingressaram de modo importante no mundo ocidental através da obra de São Tomás de Aquino.

Ao falar sobre a era de ouro do Islamismo, Leandro Karnal, trata da preservação da obra de Aristóteles pelos muçulmanos, pelo avanço científico por eles proporcionado, destacando as universidades de Córdoba, Cairo, Bagdá e Damasco; “o que havia de mais brilhante, o que havia de mais estável, o que havia de maior no ocidente, pertencia ao Islamismo, ao mundo árabe, em particular” (https://www.youtube.com/watch?v=T90Dxs_uYcM).

“Hoje em dia, a maioria dos historiadores concorda que árabes e muçulmanos foram essenciais para a filosofia e toda a ciência moderna.

(…)

É consenso entre autores que o ponto culminante para o estabelecimento ciência moderna está na série de descobertas feitas durante o movimento histórico nomeado pelo próprio Koyré de Revolução Científica. O que muitos autores esquecem, porém, é que se não fossem as pesquisas e o desenvolvimento do Império árabe-islâmico na Idade Média, nada disso teria acontecido. Só para citar alguns exemplos, os árabes deixaram trabalhos de destaque em Matemática, Filosofia, Medicina, Física, Química, e Astronomia que influenciaram diretamente os autores europeus por trás da Revolução Científica” (https://www.15snhct.sbhc.org.br/resources/anais/12/1473991953_ARQUIVO_ArnaldoArtigo15SNHCTT.pdf).

É importante, e extremamente necessário, portanto, que a História como a conhecemos, e como é transmitida nas escolas, passe a ter mais verdade científica, correspondente aos fatos efetivamente ocorridos, e às condições de racionalidade que permitiram que hoje tivéssemos o que chamamos Ciência, atividade esta que, na realidade, é quase ignorada pelos cientistas, mais apegados aos seus pressupostos ideológicos, a maioria deles já rejeitados pela própria Ciência, do que à coerência do conhecimento, em si.

Como Aristóteles e os judeus já pensavam, é indispensável, para a existência de Ciência, que haja uma ordem anterior do mundo, à qual este esteja vinculado, porque pensar que tudo no mundo é formado a partir dos encontros aleatórios e fortuitos dos átomos, pois estes seriam as únicas coisas eternas, é simplesmente pressupor que todo conhecimento está sujeito à iminente alteração fortuita, prejudicando, por princípio, a investigação científica mais duradoura. Por isso, a teoria do multiverso faz parte, na realidade, não de atividade propriamente científica, mas de teologia, que não é das melhores.

Segundo penso, há uma dependência entre o conceito de Ciência e o Deus Único do Monoteísmo, dependência que de explícita nos primeiros autores da revolução científica foi sendo tornada cada vez mais implícita, até que, hoje, o conhecimento científico dominante, desenvolvido sobre essas bases teóricas, que para ele são indispensáveis, acabou se voltando contra a própria ideia de Deus, certamente porque o próprio Cristianismo foi se distanciando de suas origens, do seu gênesis e da filosofia judaica de mundo, com sua coerência e integralidade, incorporando um dualismo platônico em seus conceitos, que já era criticado por Aristóteles, chegando à sua completa deturpação epicurista, da modernidade aos tempos atuais.

É preciso, pois, retomar os fundamentos judaicos do Cristianismo, refundindo-o com o aristotelismo, mas com prevalência do primeiro, para compreendermos que o Ser que existe separadamente e é imóvel, que tem existência independente e é eterno, isto é, que o mundo divino, que é o princípio primeiro e o mais fundamental, uniu-se ao mundo humano e temporal a partir de Jesus Cristo, superando aquela separação entre os dois mundos, num processo que se consumará quando essa unidade se manifestar em toda criação, consumando a encarnação iniciada por Jesus cristo e continuada em seus autênticos seguidores, muitos deles cientistas, quando Deus for tudo em todos, quando a unidade da Ciência for onipresente, tanto na vida humana quanto no mundo natural, quando essa potência se transformar em ato.

Para isso, a unidade científica deve ser recuperada, pela submissão de todas as coisas, inclusive científicas e políticas, à Ética de Jesus Cristo, ao seu modo integral de viver no mundo, encarnando a própria Razão, sendo manifestação viva do Deus Único, que é o princípio primeiro de todas as coisas, da própria racionalidade, é o Logos.

Se a melhor das classes de ciências é a especulativa, e, entre as próprias ciências especulativas, a melhor é a teologia, porque ela trata do mais importante aspecto da realidade, urge que tal conhecimento retome sua preeminência ontológica, lógica e racional, é preciso que o conhecimento de Jesus seja restaurado, e que ele reine, derrotando a ignorância e irracionalidade que dominam o pensamento científico e a academia.

Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído será a Morte, pois ele tudo colocou debaixo dos pés dele. Mas, quando ele disser: ‘Tudo está submetido’, evidentemente excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu. E, quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor, 15, 25-28).

A natureza da ressurreição

Há uma má compreensão da realidade bíblica no que diz respeito à ressurreição, porque os “modernos” pensam que tal evento poderia ser considerado algo natural, normal, na antiguidade, e que agora, com nosso conhecimento científico do mundo, tal fantasia já não mais pode ser aceita.

Contudo, nas próprias Escrituras, como em Atos e nos escritos de Paulo, a cruz e a ressurreição já eram tratadas, no primeiro século, como ideias absurdas, ridículas, que não faziam o menor sentido, mesmo naquele tempo, para a mentalidade antiga dominante.

“‘Por isso, não levando em conta os tempos da ignorância, Deus agora notifica aos homens que todos e em toda parte se arrependam, porque ele fixou um dia no qual julgará o mundo com justiça por meio do homem a quem designou, dando-lhe crédito diante de todos, ao ressuscitá-lo dentre os mortos’. Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, alguns começaram a zombar, enquanto outros diziam: ‘A respeito disto vamos ouvir-te outra vez’” (At 17, 30-32).

Jesus, agora, é a medida da justiça do mundo, porque o mal não mais prevalece, e a Verdade de sua mensagem, simultaneamente conservadora e revolucionária, foi dada exatamente pela ressurreição, o meio pelo qual Deus deu crédito a seu Cristo diante de todos, mostrando que a medida de Jesus é a da justiça. A ressurreição, contudo, como se pode ver pelo texto, já era motivo de zombaria.

“‘É por causa disso que os judeus, tendo-se apoderado de mim no Templo, tentaram matar-me. Tendo alcançado, porém, o auxílio que vem de Deus, até o presente dia continuo a dar o meu testemunho diante de pequenos e de grandes, nada mais dizendo senão o que os Profetas e Moisés disseram que havia de acontecer: que o Cristo devia sofrer e que, sendo o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, anunciaria a luz ao povo e aos gentios’. Dizendo ele estas coisas em sua defesa, Festo o interrompeu em alta voz: ‘Estás louco, Paulo: teu enorme saber te levou à loucura’” (At 26, 21-24).

Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1, 22-24).

A ideia de ressurreição já era considerada loucura e escândalo, tanto para gregos e romanos como para alguns judeus, mas é exatamente esse evento extraordinário um dos pontos mais nevrálgicos do Cristianismo, ainda hoje.

Atualmente, portanto, isso não é diferente, porque também os acadêmicos, que são os sucessores dos gregos, e romanos, na nova mentalidade epicurista, que hoje prevalece, em que nem mesmo as realidades platônicas são consideradas quanto à eternidade da alma, pois o platonismo moderno é representado apenas pela realidade matemática, igualmente pensam na ressurreição como algo associado a pensamentos insanos, ou arcaicos e medievais, de um tempo em que as pessoas criam em dragões e outras realidades fantasiosas.

Como a ressurreição, contudo, a própria Física, ou seja, a ciência da natureza, trouxe aos maiores cientistas do século XX os mesmos sentimentos de absurdidade e assombro diante dos fenômenos que observavam e das repercussões para o entendimento da realidade, na medida em que a segurança material foi posta em xeque, como a continuidade existencial das coisas, transmudando-se de átomos em campos e ondas, podendo não existir quando não houver alguém observando.

Para superar as dificuldades e paradoxos da física moderna, uma das soluções adotadas pelos cientistas foi inventar hipóteses para explicar o mundo natural, da constante cosmológica de Einstein, porque este, como os gregos, concebia um universo eterno, ao contrário do que já sustentavam os judeus, cristãos e muçulmanos, às várias dimensões da realidade, associadas à teoria das cordas, ou, com mais destaque após a estagnação teórica das cordas, a ideia do multiverso.

Ainda vale considerar que o multiverso é uma proposta para afastar a conotação especialíssima do nosso universo, o que também corrobora a visão de judeus, cristãos e muçulmanos de um mundo ordenado criado por Deus, porque a ideia dos vários universos, bilhões e incontáveis, seria o fundamento para explicar porque um, em especial, o nosso, tem as perfeitas características para que a vida se desenvolvesse, como se desenvolveu.

Mesmo a vida, pelo que as últimas décadas de investigação mostraram, é algo assombrosa e absurdamente diferente, o que se eleva a uma potência assustadoramente complexa quando o assunto é a mente humana e a inteligência, sobre como pensamos o que pensamos, e qual a relação do nosso cérebro com nossas ideias e nosso modo de vida.

Existem momentos únicos que mudam tudo no mundo, e que a Ciência não consegue explicar, pois precisa de repetição para fazer suas análises; de repente, um universo, então, a vida, depois, o homem.

É certo que o homem surgiu em um ambiente anterior, assim como a vida, o que também pode ser inferido para o universo, mas como havia uma natureza e uma vida animal anterior ao homem, como também condições especiais para início da vida, o que é pressuposto pelas teorias narrando composições químicas únicas, temperatura, densidade etc., fazer do nosso universo um acidente transcósmico, como o fazem os materialistas, é, literalmente, criar mundos do nada, simplesmente contrariando tudo que se conhece sobre a realidade, numa clara violação da navalha de Ockham. E nem mesmo a ideia de flutuações quânticas criando outros universos pode ser compreendida nestes termos, pois tais flutuações são projeções da ordem conhecida no nosso mundo visível e maravilhoso, pelo que não podem ser usadas para indicar a existência de um caos absoluto que teria dado origem aleatória ao nosso mundo.

Considerando toda essa situação, portanto, a ressurreição é tão absurda quanto nosso universo, também não fazendo sentido. Mas o universo faz sentido. Segundo uma frase atribuída a Einstein: “A coisa mais incompreensível sobre o mundo é que ele é compreensível”.

O universo faz sentido, quando examinado em seus mínimos detalhes, quando a racionalidade é adequadamente levada a seus limites.

A ressurreição também. Basta que seja examinada em seus mínimos detalhes, quando a racionalidade histórica é adequadamente levada a seus limites, na mentalidade em que gerada e desenvolvida, e que venceu o império, mas que depois foi por este, de certa forma, apropriada, e distorcida.

“Essa nova criação, mostrada contínua e descontinuamente com o que veio antes, está enraizada e modelada na ressurreição de Jesus. Esse é o paradigma de todo pensamento escatológico. Esse evento extraordinário faz o sentido que faz, incluindo a percepção perturbadora, dentro da antiga elite israelense e da cosmovisão dos primeiros judeus” (N. T. Wright. História e escatologia: Jesus e a promessa da teologia natural. Tradução Paulo Benício. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021, p. 373).

A ressurreição traz, também, inequivocamente, implicações políticas, pois mostra o verdadeiro poder, que vem de Deus, e não dos homens, inserindo-se em contexto tanto filosófico como teológico e natural.

“Outra distorção que deve ser desfeita é a ideia de que, no mundo antigo, as pessoas estariam prontas para crer em todos os tipos de coisas estranhas, inclusive a ressurreição corporal. A evidência é totalmente contrária: todos no mundo do primeiro século entendiam o que significava ‘ressurreição’, e todos, exceto os fariseus e outros judeus que pensavam da mesma forma, acreditavam firmemente que isso era impossível. De Ésquilo a Marco Aurélio, isso fica bem claro. Filosófica e politicamente, podemos ver a razão disso. O ressurgimento não se encaixa. Na grande previsão de Atos 26, Paulo se explica diante do governador romano Pórcio Festo e do então ‘rei dos judeus’, Herodes Agripa, destacando a ressurreição de Jesus como o evento que havia cumprido as promessas antigas das escrituras. No final do discurso, ao enfatizar o assunto, Festo grita com Paulo, chamando-o de insano. No entanto, Herodes sabe que Paulo não é louco, mas vê claramente quais seriam as consequências sociais e políticas se antiga esperança de Israel (conforme mostrada pelos fariseus) se tornasse realidade desse modo. Para começar, isso significaria que Jesus de Nazaré era o verdadeiro ‘rei dos judeus’ e que Herodes não era. Essa reação dupla persiste. O epicurismo iluminista nada mais é do que um projeto do imperialismo ocidental, que provocou reações como as de Festo às declarações judaicas e cristãs, talvez por razões semelhantes às de Agripa.

A imagem espelhada dessa distorção é a ideia de que, como muitos – talvez a maioria – judeus acreditavam na ressurreição, foi fácil para os seguidores de Jesus entender e imaginar que ela realmente havia acontecido. Essa concepção também pode ser tranquilamente destruída. Além de existirem muitos outros movimentos messiânicos e proféticos fracassados nos séculos antes e depois da ressurreição de Jesus, nenhum deles afirmou que o fundador morto havia ressuscitado” (Idem, pp. 297-298).

É contraintuitivo, assim, considerar a ressurreição uma invenção de determinada seita judaica, porque se assim o fosse não teria tomado a proporção que tomou. É obra de Deus, como consta dos Atos, nas palavras de Gamaliel:

Antes destes nossos dias surgiu Teudas, que pretendia ser alguém, e ao qual aderiram cerca de quatrocentos homens. Mas foi morto, e todos os que lhe deram crédito se dissolveram e foram reduzidos a nada. Depois dele veio Judas, o galileu, na época do recenseamento, atraindo o povo atrás de si. Pereceu ele também, e todos os que lhe obedeciam foram dispersos. Agora, portanto, digo-vos, deixai de ocupar-vos com estes homens. Soltai-os. Pois, se o seu intento ou sua obra provém dos homens, destruir-se-á por si mesma; se vem de Deus, porém, não podereis destruí-los. E não aconteça que vos encontreis movendo guerra a Deus” (At 5, 36-39).

Quase dois mil anos depois, as ideias daquela seita tomaram o mundo, ainda que tenham sido parcialmente corrompidas, mas a Verdade, a obra de Deus, não pode ser destruída. A advertência de Gamaliel, pois, continua viva, de modo que, apesar do atual imperialismo ocidental de base epicurista dominar o pensamento moderno, a obra de Deus, na nova criação, iniciada com Jesus Cristo, o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, prevalecerá, e não poderá ser destruída.

A nova criação, iniciada com a ressurreição, dessarte, começou no interior da atual criação, o que se completará com a ressurreição geral, a partir das coisas existentes neste mundo, que serão renovadas, recicladas.

Vi então os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono, e abriram-se livros. Também foi aberto outro livro, o da vida. Os mortos foram então julgados conforme sua conduta, a partir do que estava escrito nos livros. O mar devolveu os mortos que nele jaziam, a Morte e o Hades entregaram os mortos que neles estavam, e cada um foi julgado conforme sua conduta” (Ap. 20, 12-13).

A ressurreição, pois, também é um sinal de que nada escapará ao julgamento do Altíssimo, é sinal da Justiça de Deus, pequenos e grandes, todos, seremos julgados, cada um conforme sua conduta.

Sobreposição

A Física nos trouxe esse conceito, também chamado de superposição quântica, que pode ser aplicado para compreender a realidade, significando uma partícula em dois estados ou dois locais possíveis, ao mesmo tempo, até sua determinação; isto é, até o momento da medição quântica é impossível estabelecer qual a situação exata da partícula, de modo que é considerada simultaneamente em dois estados contraditórios. Tal fenômeno está ligado à ideia do gato de Schrödinger.

Não temos informações suficientes para entender exatamente o que ocorre no momento da medição, para explicar como a sobreposição se transforma numa situação específica, pois há uma limitação epistemológica envolvida nesse fenômeno, um limite à nossa atual racionalidade científica. O fato é que a observação transforma um estado duplo possível num único concreto, a potência aristotélica se convertendo em ato.

Nesse mesmo sentido, uma das conclusões da física moderna consiste no fato de que não é possível separar o observador da observação, pois esta ocorre quando o observado e o observador se tornam uma unidade inteligente. Todo aparato teórico do observador é dirigido para uma medição específica, delimitada pelo que está sendo buscado, como se verifica no paradoxal experimento da dupla fenda, segundo o qual o cientista observará onda ou partícula a depender do que estiver procurando. O olhar do sujeito determina o objeto, o observador é o observado, ou a observação.

Tal é a unidade do todo com a parte, manifestando um entendimento holístico do mundo, uma união permanente e intermitente ou pontual entre ideia e realidade, porque tanto a primeira quanto a segunda são inesgotáveis naquele momento, pois o transcendem, na medida em que a imanência é sempre um momento provisório da transcendência, que o eterniza. Todo imanente se esvai, enquanto o todo transcendente permanece, mantendo a continuidade da imanência, que reflete a unidade da transcendência.

Com grande satisfação, verifiquei o conceito de sobreposição sendo usado por Tom Wright na História, na perspectiva do Templo e de Cristo, e sobre a ressurreição de Jesus, algo que repugna nossa racionalidade comum, da mesma forma como ocorre para os físicos com os resultados da Física (Natureza) mais profunda, a qual dá início à nova criação, dizendo que é a renovação da criação ocorrendo no velho mundo criado. “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21, 5)

“A questão da cosmologia fundamentada no Templo, a sobreposição entre céu e terra, é que, afinal de contas, acontecem coisas na terra que são verdadeiros sinais da presença do céu e que, portanto, podem ser historicamente discutidas, e não só em uma esfera privada chamada ‘fé’. A questão da escatologia baseada no Sábado, a sobreposição de eras, é que as coisas acontecem no tempo presente e são amostras reais do futuro. Nesse universo de espaço e tempo duplos, estamos nos referindo ao mundo público, porém um mundo maior do que aquele imaginado pela indução cartesiana ou pela dedução kantiana. Então, conhecer esse mundo como portador da imagem significa abrir-se – em resposta ao amor – à revelação do amor extravagante e generoso do criador” (N. T. Wright. História e escatologia: Jesus e a promessa da teologia natural. Tradução Paulo Benício. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021, p. 313).

Um dos grandes valores da obra de Wright está no fato de que para se conhecer verdadeiramente Jesus e sua mensagem é indispensável compreender a mentalidade do seu tempo e, dentro do que seja possível, entrar na cabeça das pessoas daquela época, de Jesus e dos apóstolos, o que é alcançado com maestria pelo autor, com destaque para a importância do Templo, que representava a presença espacial de Deus na terra, e do Sábado, como uma antecipação do descanso, e do Reino.

Penso que o Cristianismo antecipou as profundezas da realidade e da natureza que começam a ser descobertas pela chamada física quântica, segundo a qual são inadequadas as propostas cartesiana e kantiana e as visões materialistas de mundo. A esfera pública da História e da Física é também o espaço da ação de Deus, de uma forma que supera a dualidade cartesiana de res extensa e res cogitans, tal como ocorre na unidade entre o observado e o observador, e na qual encontramos não apenas fenômenos, como imaginava Kant, mas aspectos da própria realidade última, cintilando à nossa vista, que exige categorias espirituais para ser compreendida.

No Cristianismo, a sobreposição entre céu e terra que ocorria no Templo e no Sábado, para o povo judeu, é transferida para o próprio Jesus, o Messias, o Rei dos judeus, e, então, a seus seguidores, que assumem a condição de messias delegados e filhos de Deus e passam a ser o sinal da presença do céu na terra, o que é um dos significados da expressão “o reino de Deus está dentro de vocês” (Lc 17, 21), e depois fica inequívoco nas palavras de Paulo:

Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus? … e que, portanto, não pertenceis a vós mesmos? Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate; glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo” (1Cor 6, 19-20).

A Ekklesia, a comunidade cristã, é o sinal da presença de Deus na terra, até que a renovação avance, quando receberá o governo do mundo, na construção e na vivência do Reino. O corpo, portanto, não é algo a ser descartado, para que possamos ir para o céu, mas a sede da habitação do Espírito, até a renovação corporal, na ressurreição ou na transformação, no último momento do velho mundo, que antes da transição final será governado por Cristo, neste mundo, nestes corpos.

“A ressurreição é a reafirmação, por meio da transformação redentora, do velho mundo. Tal mudança não deixa a criação original para trás, nem finge que seja algo irrelevante. Como no Êxodo, os escravos são libertos, não por esquecerem as promessas feitas a Abraão, mas por cumpri-las. O amor na criação e na salvação preenche a lacuna do lado de Deus e como o modo final de conhecimento humano aproxima-se como resposta. No próprio Jesus, ambos os pontos se concretizam: esse é o mistério da cristologia e a chave para sua integração correta. Na nova criação, o ‘mar’ não mais existe (Apocalipse 21:1), nem ‘fosso feio’. ‘Ressuscitando dos mortos, Cristo jamais voltará a morrer: a morte não tem mais poder sobre ele’. A divisão entre eterno e eventual, como também entre passado, presente e futuro, é superada pelo próprio portador da imagem, que gera o amor no mundo, e também por aqueles que, em reposta, são renovados no conhecimento amoroso conforme a imagem de Jesus. Ele pergunta: ‘Simão, filho de João, tu me amas?’ (João 21:15-19). Quando as falhas petrinas, morais e epistemológicas, são perdoadas, o amor acredita e vai à luta. E esse trabalho, como já vimos, inclui a tarefa de uma história revitalizada” (Idem, p. 320).

Há uma continuidade, portanto, entre o velho mundo e o novo mundo, sendo a ressurreição um sinal presente de uma realidade futura que já começou, a nova criação nascendo no meio da antiga.

O período de transição começa com a ressurreição de Jesus, tem continuidade com a proclamação do Evangelho, tempo em que a sobreposição já existe, porque o Reino já foi inaugurado quando Jesus ressuscitou.

“Esse conceito de reino já inaugurado por Deus aparece explicitamente em Romanos 5:12-21, a base para os capítulos 6, 7 e 8. O reinado do Messias e o de Deus por meio dele – e, com ele, de seu povo – são aqui realidades presentes com consequências futuras” (Idem, p. 223).

O Messias já reina, mas ainda não opera de forma plenamente visível, porque os principados e autoridades deste mundo continuam a agir. A sobreposição, contudo, em algum momento, será alterada, com o governo visível do Ungido de Deus.

Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram. Com efeito, visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida. Cada um, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda. A seguir haverá o fim, quando ele entregar o reino a Deus Pai, depois de ter destruído todo Principado, toda Autoridade, todo Poder. Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído será a Morte, pois ele tudo colocou debaixo dos pés dele. Mas, quando ele disser: ‘Tudo está submetido’, evidentemente excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu. E, quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15, 20-28).

Antes do “a seguir haverá o fim” acontecerá uma virada, de modo que a sobreposição continuará, mas com outra tendência, porque se hoje o mal é aparente e o bem é oculto, quando Cristo reinar visivelmente, o bem será aparente, e o mal estará aprisionado. É preciso que tudo seja submetido a Cristo, não falsa ou parcialmente como já ocorreu até aqui depois que a ideia de Cristo foi assumida pela autoridade pública para seus próprios fins, mas na plenitude do Reino, do governo messiânico milenar, a serviço pleno do Pai e do próximo.

Como consta na explicação deste sítio – Sobre (https://holonomia.com/sobre/):

“O tempo presente é de transição, de superação da fase metaestável do universo, conforme medições do bóson de Higgs e suas implicações cósmicas, pois a conclusão do valor encontrado para o bóson de Higgs é no sentido de que nosso universo é como um gelo em processo de derretimento, está em mudança de fase. O valor energético do bóson de Higgs surpreendeu os físicos, pois não favoreceu a tese da supersimetria, tampouco corroborou a teoria do multiverso, deixando em aberto a visão cosmológica compatível com a Ciência e mantendo válido o entendimento Cristão de um mundo instável, em processo de cura pela ação messiânica de Jesus e seus seguidores, uma vez que o problema da medição quântica correlaciona a ação humana à própria definição da realidade.”

Algo aconteceu de extraordinário na Palestina do século I, na ressurreição de Jesus, o início da transição para o equilíbrio cósmico, um evento do final dos tempos, pois a ressurreição será para todos, ocorrido no presente, antecipando a realidade vindoura, e mostrando o sentido da História. No processo de derretimento cósmico, Cristo foi o primeiro, e muito antes, a mudar de fase.

O observador humano Jesus uniu-se ao Observador último, Deus, tornando-se um com Ele, e mudando o mundo observado. As testemunhas desse evento, por sua vez, também tornaram-se observadoras dessa realidade una, dando continuidade ao processo histórico de renovação do mundo, o que, desde então, já está mudando a face da Terra, e continuará até que todos os observadores tenham concluído seu processo de observação do mundo, incluindo o necessário testemunho da vida Jesus e sua importância para a humanidade.

Nessa linha de raciocínio é possível considerar o conjunto observador/observado como outro observado, a partir de outro nível de observação. Contudo, nessa segunda experiência há um aspecto qualitativamente diferente, porque há uma sobreposição de observações, com dificuldade de mensurações individualizadas.

A realidade é definida pela observação, havendo uma dificuldade na sua definição porque todos somos observadores, que nos sobrepomos em nossas análises do mundo, existindo vários níveis de obervação, sucessivamente, até que todos os observadores sejam simultaneamente observados, quando, então, a subjetividade de cada observação será situada em um nível cada vez maior de objetividade, até atingir o último Observador, a última subjetividade, que é também a primeira, e objetiva, vinculada a Cristo.

É humanamente impossível realizar a observação simultânea de todos os eventos, de modo que se torna necessária, para a inteligibilidade e cognoscibilidade dos fenômenos, a organização sequencial ou espaço/temporal dos acontecimentos, uma história, uma narrativa mostra-se imperiosa para a razão humana compreender o que ocorre no mundo. Nessa história há um evento fundamental, que dá objetividade à humanidade, e somente quando devidamente observado faz com que a realidade seja alcançada.

Para tanto, é condição o conhecimento de Jesus, seu conhecimento bíblico, narrado por Paulo, quando uma unidade ocorre, uma sobreposição, formando o verdadeiro cristão: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).

O tempo existe

O físico Carlo Rovelli sustenta que o tempo não existe, sendo uma ilusão, conforme reportagem produzida pela BBC, disponibilizada sua leitura no YouTube com o título “‘O tempo não existe’: a visão de Carlo Rovelli, considerado ‘novo Stephen Hawking’” (https://www.youtube.com/watch?v=M3xT8azucew).

Do referido autor, já li a obra “A realidade não é o que parece”, na qual tenta retomar, em certo sentido, a ideia atomista de que a realidade seria feita de pequenas partículas, que formam os corpos maiores. Nesse sentido, importa salientar que Rovelli, assim, tem uma visão materialista de mundo, e tal modo de pensar determina o sentido de todas as suas ideias, para o bem e para o mal.

Compará-lo com Stephen Hawking, por sua vez, talvez não seja propriamente um elogio, dado que o falecido cientista e escritor não era exatamente o exemplo de integridade que se espera de uma pessoa da Ciência. Essa é a conclusão do Dr. Brian Keating entendendo haver desonestidade intelectual na obra de Stephen Hawking, aduzindo que este manipulava e distorcia conceitos físicos, como pode ser visto na conversa: “Stephen Meyer: Return of the GOD Hypothesis!”(https://www.youtube.com/watch?v=1ZvrwDtg7rQ).

O que muitos físicos (o que se aplica igualmente para juristas, políticos, religiosos etc) muitas vezes fazem, portanto, é se aproveitar da ignorância alheia e distorcer as informações, comunicando mentiras como se verdades fossem.

Isso vale também para a abordagem materialista de Carlo Rovelli, que, ao mesmo tempo, afirma suportar uma ideia atomista de mundo, segundo a qual as conexões entre os fenômenos são determinadas pela pura aleatoriedade, em que pese os fundamentos da proposta atomista terem sido rejeitados pela física moderna, e considerar que o mundo é feito de relações, mas apenas considerando aquelas que interessam ao seu ponto de vista, em uma parcialidade naturalmente incompleta e cientificamente inadequada, que despreza a inteligência do todo maior.

A perspectiva filosófica, como destaca o autor, é indispensável, devendo incidir sobre os fatos medidos em laboratório, que são restritos e devem ser avaliados levando em conta seu entorno, e o sentido respectivo, na maior amplitude inteligível. A análise materialista peca por não explicar minimamente como é possível, desconsiderando a existência do espírito, a ocorrência de memória, inteligência e mesmo a compreensão da (não) passagem do tempo. Daí a afirmação de que é uma ilusão, o que decorre da fragmentação do conhecimento do mundo, sem sua reunificação, o que não ocorre mesmo teoricamente.

Para chegar a uma nova teoria é, sim, preciso construir um esquema mental não dependente inteiramente de nossa concepção usual de espaço e tempo, mas ao se pensar o tempo sem vê-lo como uma variável contínua, isto é, atomisticamente, como sustenta o autor, perde-se simplesmente a ideia de tempo, da sequência dos eventos, porque somente é possível escapar de um caos absoluto e da total ininteligibilidade ao se adotar uma referência temporal que utilize um marco temporal inicial e final, uma continuidade, ainda que pontualmente descontínua, dentro da qual o espaço-tempo é considerado, por uma sequência de eventos, e mesmo que o tempo seja individual, até certo ponto, da perspectiva da relatividade, ao exigir os referenciais espaço-temporais específicos, somente é possível considerar os tempos relativos ao se postular os marcos temporais dos eventos considerados, e daqueles outros que também estão a eles relacionados, porque existentes na realidade, ao menos potencialmente, com os marcos temporais considerados, o que exige a correlação de todos os tempos possíveis, necessidade esta que deve retroagir até o princípio concebível da contagem do tempo, quando o próprio espaço-tempo foi formado, e também para o futuro da expansão cosmológica, levando em conta todos os tempos relativos aos eventos potencialmente analisados, de modo que a correlação dessas contagens demanda a consideração de algo que seja conceituado como um tempo absoluto, que serve de referência para todos os tempos individuais, surgido no primeiro espaço-tempo de plank formado, que tornou possível tanto a existência material quanto a ideia da contagem do tempo.

A nossa incapacidade de computar todos os marcos temporais possíveis e relacioná-los a partir desse ponto inicial não significa que não exista uma contagem absoluta do tempo, apenas que não podemos medi-la segundo nosso conhecimento científico atual, e material.

O que Rovelli e outros materialistas costumam fazer é considerar o recorte da realidade por eles analisado como se fosse a própria realidade, o que é falso, pois aquele recorte simplesmente é uma amostra que deixa de fora um universo de informações, com todas as relações que remetem àquele primeiro momento da existência de nosso universo, levando a um conhecimento parcial e aproximado (ou distante), que não pode ser extrapolado e usado como medida para o conhecimento de toda significação do universo, que inclui todos os aspectos da realidade que foram deixados de fora do experimento.

Portanto, o próprio pesquisador, ao ser indagado, responde “sim, claro que o tempo existe”, ao levar em conta uma questão essencial, as circunstâncias da vida humana concreta. Dizer que o tempo é uma ilusão, que não existe, outrossim, é uma metonímia mal empregada, porque usa conceitos não compreendidos da física quântica, extrapolando-os para âmbitos da realidade aos quais não se aplicam. Porque o materialista ignora a realidade espiritual, que é exatamente o que permite entender o tempo, mesmo em sua abstração científica, acaba não compreendendo o valor da existência, a graça de sermos mais do que um amontoado aleatório de partículas, de sermos um espírito que está fora do tempo e que atua na temporalidade.

O tempo é feito de muitas camadas, como salientado na entrevista, sendo que as mais elevadas são simplesmente ocultas aos materialistas, que medem as coisas apenas da perspectiva da parcialidade dos fenômenos, do aqui e do agora, desprezando a totalidade dos eventos, em sua unicidade, que diz respeito à não localidade e não transitoriedade, a uma percepção imaterial que é, simultaneamente, temporal e atemporal, ligada à ideia de espírito e do próprio conceito de humanidade, como criatura feita à imagem de Deus, o Espírito criador.

O detalhe das coisas, na acepção espiritual, diz respeito tanto ao passado como ao futuro, porque apenas da perspectiva do espírito, que transcende o espaço-tempo, não há distinção entre o passado e o futuro. A permanência das coisas não é resultado do materialismo, mas da ideia bíblica. “Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje; ele o será para a eternidade!” (Hb 13, 8). É o espírito que permite essa compreensão da atemporalidade, muito mal compreendida quando analisada da perspectiva materialista, como a de Carlo Rovelli.

Diz o autor que as propriedades das coisas são relativas a outras coisas e se tornam reais nas interações, que fazem surgir as propriedades. Que as propriedades das coisas são relativas a outras coisas.

Assim, quando todas as coisas são consideradas, mesmo que o espírito esteja além do espaço-tempo, o tempo de que dispomos no corpo se transforma em algo muito concreto, muito real, nada ilusório, representando o espaço para o desenvolvimento do espírito, para valorizar as coisas, as pessoas, os bens que não se perdem com o tempo, e para relacioná-las adequadamente, na vida bem vivida.

De fato, é indispensável que a Filosofia ande de mãos dadas com a Ciência, sendo igualmente necessária a consideração das questões físicas do mundo e da vida corporal, para que a análise filosófica não fique restrita à especulação conceitual e linguística, e faça referência à realidade empírica. “Os filósofos que ignoram o que aprendemos sobre o mundo com a Ciência acabam sendo superficiais”.

Os filósofos que ignoram a História e a realidade humana, igualmente, acabam sendo superficiais, o que vale para a visão materialista do autor, refletida no comentário político, dizendo que o Ocidente está fazendo inimigos, como China, Irã e Rússia, dizendo ser necessário viver de forma respeitosa e colaborativa sem subjugar os outros, quando as nações citadas têm uma difícil relação com a oposição política, a ideia de respeito a direitos é muito distinta da ocidental, ainda que as falhas intelectuais e morais deste lado do mundo também não sejam desprezíveis.

Concordando, finalmente, com Rovelli, podemos dizer que somos, efetivamente, membros de uma única família, a família de Abraão, e a realidade é, sim, tecida de relacionamentos, e permanecemos cegos para o fato de que prosperamos na relação com outros, e não uns contra os outros.

Essa relação, finalmente, ocorre exatamente no tempo, e na história, que tem suas marcas, seu significado, sua direção, que é determinada pela visão de mundo adotada pela pessoa, pela sua filosofia de vida, que é também sua teologia, tendo como exemplos os dos heróis, dos mártires, aqueles que viveram adequadamente suas vidas, e nos deixaram seu testemunho, um legado espiritual que ainda está em construção, a despeito das tentativas dos inimigos de ocultá-lo ou destruí-lo.

Segundo a visão que sigo, o tempo existe, a história tem uma direção, que não é ilusória, individual ou coletivamente.

Individualmente, tenho a esperança apostólica, aguardando, “em Jesus, a ressurreição dos mortos” (At 4, 2), “porque se nos tornamos uma coisa só com ele por uma morte semelhante à sua, seremos uma coisa só com ele também por uma ressurreição semelhante à sua, sabendo que nosso velho homem foi crucificado com ele para que fosse destruído este corpo de pecado, e assim não sirvamos mais ao pecado” (Rm 6, 5).

No plano coletivo, a esperança temporal ainda diz respeito à vinda do Reino, um tempo que já existe espiritualmente, a profecia de um futuro que acontece agora na eternidade, mas ainda ocorrerá na realidade humana material, como sequência da ação de Cristo e de seus seguidores, o que está relacionado à sua ressurreição, a ser reconhecida como um fato do mundo natural, uma realidade física, que valeu para Jesus e também valerá para nós.

Cada um, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda. A seguir haverá o fim, quando ele entregar o reino a Deus Pai, depois de ter destruído todo Principado, toda Autoridade, todo Poder. Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo dos seus pés” (1Cor 15, 23-25).

O tempo, portanto, existe, assim como a história, de cada indivíduo e de toda a humanidade. Para que o seu sentido seja compreendido, finalmente, é indispensável que os inimigos de Cristo, os que negam seu Espírito, como os que rejeitam o tempo e a história, desde o Princípio, sejam colocados abaixo de seus pés, rebaixados, para que a Verdade, a Filosofia e a Ciência sejam postas em seu lugar devido, porque, no fim das contas, se não houver Tempo, se não existir Ordem também não haverá Verdade, muito menos Ciência.

Em busca da ordem

“Hegel, como muitos de seus contemporâneos e sucessores até Nietzsche, Jung e Heidegger, havia sido vítima de sua educação sob as pressões de um ambiente ortodoxo. Ele havia sido exposto, com uma intensa experiência de resistência, à deformação do complexo consciência-realidade-linguagem, à deformação da realidade-Isso na realidade-coisa, da luminosidade na intencionalidade, dos símbolos em conceitos definicionais. O Além, o símbolo criado por Platão para expressar sua experiência da realidade divina como formativamente presente nos movimentos participativos da metaxy, tornou-se um objeto situado espacialmente, um Jenseits deste mundo; e a simbolização platônica do Nous divino como o Ser além dos seres finitos foi transformada no conceito de uma coisa existente além das coisas existentes. Na linguagem de Hegel, os símbolos experienciais Além e Ser tornaram-se entidades com um artigo definido, das Jenseits, das Sein. Por fim, a deformação linguística tornou possível para o símbolo Ser aparecer como o predicado nas proposições nas quais o Deus da ortodoxia cristã tornou-se o sujeito, como em Gott ist das Sein. Os símbolos noéticos e pneumáticos, helênicos e judeu-cristãos foram transformados em conceitos intencionalistas a ser manipulados por pensadores proposicionais. A conquista irreversível de Hegel é ter compreendido inteiramente a deformação dominante dos símbolos, e seu grandioso fracasso foi ter tentado chegar a uma solução fundindo a realidade-Isso e a realidade-coisa no novo simbolismo do Sein, um sujeito que desdobra sua substância ‘dialeticamente’ no processo histórico até chegar a seu eschaton, seu Fim, na conceituação plenamente articulada de sua autoconsciência, abrangendo assim a própria realidade abrangente” (Eric Voegelin. Ordem e História. Vol. V. Tradução Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 87).

Nossa abordagem da realidade está deformada há muito tempo e Eric Voegelin destaca a conquista irreversível de Hegel por ter compreendido inteiramente a deformação dominante dos símbolos.

Vogelin sustenta que são poucos aqueles que procuram realmente conhecer a realidade, porque a maioria dos investigadores do mundo acaba se entregando à construção do que chama de “Segundas Realidades”, que são aquelas decorrentes do apego aos conceitos formados para entender a realidade, ou realidade-Isso, transformada em realidade-coisa, quando o mundo trabalhado intelectual é apenas o mundo da linguagem formada, consolidada, que acaba se descolando da realidade-Isso, adquirindo autonomia em relação a esta, fazendo com o que a consciência do inquiridor se transforme em inconsciência.

Vivemos, assim, num estado de inconsciência pública, porque a linguagem e os símbolos vivenciados coletivamente estão distantes da realidade-Isso, o que é tratado como deformação do complexo consciência-realidade-linguagem.

Contudo, a tentativa chamada de fracasso, ao contrário do que sustenta Voegelin, está na direção correta, segundo o que penso ser a interpretação adequada das Escrituras, reunir a realidade-Isso e a realidade-coisa.

“Entretanto, quaisquer que sejam as ramificações da experiência que possamos acrescentar, o dominante no símbolo ‘Geist’ segue sendo uma escatologia paraclética, a visão de um descenso do Espírito que alcançará aquilo que as cristandades de Pedro e de Paulo não alcançaram – isto é, a Parusia definitivamente salvacional do Além neste mundo. Entregar-se a essa fantasia, e propor, no curso de sua realização ativista, a abolição da filosofia requeria um considerável grau de inconsciência a respeito do tratamento desse problema por parte dos pensadores helênicos, helenistas e medievais” (Idem, pp. 86-87).

O que Voegelin trata como fantasia, porque aliado a uma determinada visão escatológica, divergente daquela fantasiosa apontada por Hegel, e ainda que esta também não seja imune a críticas, talvez seja exatamente a escatologia bíblica, cujo significado foi perdido em razão da deformação dominante dos símbolos cristãos que se seguiu à escatologia consolidada por Agostinho de Hipona, no sentido de que não haverá o Reino milenar de Cristo.

A deformação do complexo consciência-realidade-linguagem é muito provável esteja presente tanto na escatologia defendida por Voegelin como no tratamento da questão escatológica pelos pensadores helênicos, helenistas e medievais.

Como venho sustentando, a proposta bíblica é exatamente de superação da separação existente entre Deus e o mundo, em certo sentido, entre a realidade-Isso e a realidade-coisa. O Reino de Deus deve ocorrer neste mundo, como sustento no texto “Agora” (https://holonomia.com/2018/11/11/agora/):

“É importante frisar que Jesus e seus discípulos eram judeus, e os judeus não separavam temas morais, religiosos ou políticos, dada a unidade de sentido que pautava a comunidade judaica. A questão política, do Reino, era uma das manifestações de Deus entre os homens, e não faria sentido para um judeu remeter o Reino exclusivamente para outro mundo, para o além.”

Na medida em que, a partir de Agostinho, prevaleceu uma mentalidade platônica no entendimento cristão de mundo, é mais ou menos óbvio que uma escatologia paraclética, que não estava presente nas propostas dos pensadores helênicos e helenistas também não tenha aparecido entre aqueles medievais.

Não devemos nos esquecer que a oração ensinada por Jesus inclui o pedido de um descenso do Espírito, “venha o teu Reino, seja feita a tua Vontade na terra, como no céu” (Mt 6, 10); “venha o teu Reino” (Lc 11, 2).

Outrossim, procurar processo histórico o seu eschaton, seu Fim, está em conformidade com a leitura até mesmo mais direta das escrituras, pois no fim dos tempos está prevista exatamente descida da Jerusalém celeste: “Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade santa, uma Jerusalém nova, pronta como uma esposa que se enfeitou para seu marido” (Ap 21, 2).

Obviamente, é possível compreender tal narrativa como expressão de uma mitoespeculação por meio de linguagem compacta, mas o próprio Voegelin vê o “capítulo 1 do Gênesis como uma ‘mitoespeculação pneumaticamente diferenciada’, caso queiramos entender o uso diferenciado ao qual a linguagem do mito foi submetida no Gênesis, criando mediante esse uso uma nova linguagem para novas concepções”, para depois afirmar que entende o “Gênesis como um dos grandes documentos no processo histórico da passagem das linguagens compactas para as linguagens diferenciadas” (Idem, pp. 43 e 45).

Portanto, se próprio livro do Gênesis, com uma linguagem de séculos de antecedência em relação ao Apocalipse, já era uma forma de linguagem diferenciada, é perfeitamente cabível conceber também o texto da Revelação, posterior e fruto do desenvolvimento daquela linguagem, como expressão de uma nova concepção, um complexo consciência-realidade-linguagem, que não estava presente na mentalidade dos pensadores helênicos e helenistas ou, porque se vincularam, nesse ponto, à mentalidade destes, também dos medievais.

É bem possível que o descenso do Espírito alcançado pelas cristandades de Pedro e de Paulo não tenha sido, ainda, o que os profetas haviam previsto, e que a escatologia paraclética possa, enfim, se consumar, quando a humanidade estará corretamente orientada no seu trabalho em busca da ordem, quando a autoconsciência humana, coletivamente, dentro da História, chegará ao seu Fim, isto é, sua união com Cristo e, finalmente, com o próprio Deus.

Derramarei o meu espírito sobre a tua raça e a minha bênção sobre os teus descendentes” (Is 44,3).

“‘Depois disto, derramarei o meu espírito sobre toda carne. Vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos anciãos terão sonhos, vossos jovens terão visões. Mesmo sobre os escravos e sobre as escravas, naqueles dias, derramarei o meu espírito. Colocarei sinais nos céus e na terra, sangue, fogo e colunas de fumaça’. O sol se transformará em trevas, a lua em sangue, antes que chegue o dia de Iahweh, grande e terrível! Então, todo aquele que invocar o nome de Iahweh, será salvo. Porque no monte Sião haverá salvação, como Iahweh falou, e em Jerusalém sobreviventes que Iahweh chama” (Jl 3, 1-5).

A Lógica do julgamento (final)

No último mês, li a obra baseada na tese de doutorado de Fabrício Simão da Cunha Araújo, com o título “A lógica da fundamentação das decisões judiciais: a dinâmica entre argumentação jurídica e a valoração probatória”, defendida perante a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. O livro faz uma excelente exposição sobre a base filosófica e lógica por trás da argumentação e fundamentação jurídica da decisão judicial.

O texto traz uma anamnese da história do pensamento lógico, inciando por algumas anotações sobre conceito de Logos presente tanto no ideário grego como no Evangelho de João, passando pela lógica clássica de Aristóteles, baseada nos seus princípios da identidade, não contradição e terceiro excluído, e chegando na Física quântica, que possui interpretações segundo as quais a lógica aristotélica teria sido parcialmente refutada.

O capítulo seguinte trata da nova visão do processo, com destaque para as ideias de Elio Fazzalari, concebendo-o como procedimento em contraditório, e para a teoria neoinstitucioalista, que superou o entendimento de que o processo seria concebido como instrumento da jurisdição para vê-lo como “instrumento que habilita a consecução da democracia no bojo do exercício de toda e qualquer função estatal” (Fabrício Simão da Cunha Araújo. A lógica da fundamentação das decisões judiciais: a dinâmica entre argumentação jurídica e a valoração probatória. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 96). Como o processo estabelece a lei das partes, estas devem influir em sua elaboração, por meio do contraditório.

Depois, o tema fundamental da linguagem é explanado, mostrando como o processo também serve para estabelecer os sentidos do texto para o caso, dizendo ser “necessário explorar o significado de determinada expressão normativa, conceito ou princípio jurídico conforme seus referenciais se manifestam na realidade e não de forma abstrata, universal e imutável (Idem, p. 116).

Finalmente, é destacada a utilização da lógica utens na valoração da prova, fazendo retornar ao processo a experiência comum, da vida cotidiana, de modo que o julgamento tenha sua conclusão sindicável pelos indivíduos participantes da atividade jurisdicional. As máximas da experiência, assim, podem ser utilizadas para “atribuir maior ou menor valor probatório às provas trazidas ou produzidas no processo” (Idem, p. 156), destacando a importância da demonstração da inteligibilidade do argumento:

“Além de explicitar quais são as provas constantes nos autos que o conduziram a presumir que os fatos ocorreram de uma ou outra forma, caso ambas as partes tenham produzido provas voltadas a infirmar a prova do ex adverso, é imprescindível que o julgador não se restrinja a declinar as provas (sempre obrigatoriamente indicando sua localização) que preponderaram para seu convencimento, mas também explicite as razões pelas quais se deve valorar as provas em conflito como o faz, ou seja, as razões lógicas (utens) por que se deve atribuir maior carga de persuasão a algumas provas e menor a outras” (Idem, p. 173).

Enfim, o texto é elaborado segundo a melhor técnica processual, salientando que a busca da verdade é o ideal regulador da investigação científica, amparando-se nos ensinamentos de Tarski e Karl Popper. Segundo o último:

“Nós também vemos a ciência como busca da verdade e, pelo menos desde Tarski, já não temos medo de dizê-lo. Aliás, só tendo como referência essa meta, a descoberta da verdade, podemos dizer que, mesmo sendo falíveis, esperamos aprender com nossos erros. Só a ideia de verdade nos permite falar com sensatez em erros e em crítica racional, e só ela possibilita o debate racional – ou seja, o debate crítico à procura de erros, com o sério propósito de eliminar tantos deles quanto seja possível a fim de chegar mais perto da verdade. Por isso, a própria ideia de erro – e falibilidade – implica a ideia de uma verdade objetiva como um padrão que talvez não possamos atingir. (Nesse sentido a ideia de verdade é reguladora)” (Apud Fabrício Simão da Cunha Araújo. In A lógica da fundamentação das decisões judiciais: a dinâmica entre argumentação jurídica e a valoração probatória. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 184).

Referida citação demonstra, o que nunca é destacado quando citada a ideia de falseabilidade de Popper, que quando algo é falseado outro algo é afirmado, e esse outro algo é a ideia de verdade, que nos permite falar com sensatez em erros e em crítica racional, e só ela possibilita o debate racional. Tal ideia de verdade funciona como o axioma ou pressuposto fundamental da própria atividade científica, incompatível com os relativismos vários, inclusive o moral. Sem uma verdade que permaneça nem a própria atividade de falsear as teorias científicas seria possível.

Nesse ponto, e superando parcialmente a proposta do livro, talvez seja possível ainda ver o processo como instrumento da juris dicção, como meio para expressão da Verdade, ou a verdade que mais dela se aproxima, que continua pressuposta, sem que isso infirme a teoria neoinstitucional e o apreço pela fundamentação democrática da decisão decorrente do procedimento em contraditório, que faz o controle entre aquela Verdade e a verdade provada, ou presumida, do processo. Sem que seja pressuposta uma Verdade última e final, a ideia de falhas e erros perde o seu significado, transformando o debate racional e a própria racionalidade em mera convenção, que pode ser arbitrariamente modificada segundo a vontade da ocasião.

Daí porque é fundamental também que a vontade do julgador esteja de acordo com a Verdade, que seja voltada à sua busca, como enfatizado no final do texto de Fabrício, ainda que isso tenha se tornado uma questão de menor importância nos dias atuais, a ética pessoal do julgador, que é associada a uma concepção filosófica tanto de Ética como de Verdade. A má Filosofia dos últimos tempos prejudica essas concepções e dificulta que tenhamos os melhores exemplos de julgadores, pois, por mais bem formados que sejam, sua honestidade ético-cultural é prejudicada por aquela má Filosofia, como ocorre com os julgadores cristãos que defendem juridicamente teses que contrariam o Cristianismo, este que também tem natureza jurídica, e, em decorrência, a correção de suas decisões, tendo como parâmetro a postulada Verdade, hoje praticamente desconsiderada no plano político-jurídico.

A questão da mentalidade do julgador e sua importância para o julgamento está relacionada à posição do observador na medição quântica. Assistindo ao vídeo “Taher Gozel interview with Basil Hiley on the holistic quantum model he produced with David Bohm” (https://www.youtube.com/watch?v=USnxT45B_1Y&t=2430s), lembrei-me da questão fundamental da Física quântica, que contraria o entendimento científico moderno, o qual pretendia a objetividade pela retirada de todas as questões subjetivas, do observador, do experimento científico.

A atividade científica mais fundamental não pode ser feita de forma independente do observador, o que, aplicado ao julgamento, significa que a decisão judicial não pode ocorrer sem a participação do juiz, que, com sua simples interferência no processo, por si só, já altera a realidade a ser analisada, na totalidade que inclui observador e observado. O juiz não é um agente passivo que apenas descreve e qualifica os fatos que lhe são narrados pelas partes, ele muda qualitativamente a realidade do processo e, consequentemente, os próprios fatos em julgamento, segundo sua posição, sua teoria, suas percepções etc.

“O cientista que está fazendo a experimentação, seu envolvimento, suas intenções e tudo mais, muda a experimentação”. A depender do cientista, e julgador, portanto, a decisão pode ser uma ou outra, porque a própria realidade experimentada será uma ou outra. Como, no caso da medição judicial, o aparato observador é a própria pessoa do julgador, outrossim, não há como afastar essa interferência, essa participação nos próprios fatos observados. Uma vez que a teoria encampada pela doutrina jurídica, que forma os julgadores, em si, está eivada de equívocos fundamentais, tal situação explica, em parte, julgamentos tão dissonantes sobre fatos semelhantes.

O critério final de julgamento, destarte, é pessoal, refere-se à pessoa juiz, sua honestidade ético-cultural, integridade e senso arraigado de correção e justiça, vinculados à teoria jurídica por ele encampada.

Ainda que seja altamente preocupante a situação atual da humanidade, porque não existe honestidade ético-cultural, em sentido amplo, na própria teoria jurídica pós-moderna, o curso da História está em desenvolvimento, e o julgamento final será feito por meio da pessoa com maior honestidade ético-cultural, integridade e senso arraigado de correção e justiça que já passou pelo planeta, Jesus de Nazaré, o qual incorporou a própria ideia de Verdade, tornando-a existencial, estando presente na estrutura de nossa ética e nossa cultura, por mais que seus inimigos tentem ofuscar esse fato. É pressuposto da atividade científica que, mais cedo ou mais tarde, a verdade se mostre, o que conduzirá à necessária inclusão da mensagem evangélica nessa empreitada, porque a ideia de Logos como a conhecemos, o que inclui a de Verdade, é não pode ser dissociada da pessoa de Jesus, sua vida, sua obra e sua doutrina, e como ele mudou o mundo.

Esse, portanto, é o critério do julgamento final, que leva em consideração como alteramos a realidade, se o fazemos honestamente, em busca da Verdade, ou se a manipulamos para fins particulares, em seu detrimento, praticando, enfim, a corrupção existencial através do erro/pecado/ilícito e da injustiça.

Se não existe Verdade, não há julgamento falho, não há injustiça, apenas opiniões e convenções distintas sobre o que quer que esta. A própria ideia de erro – e falibilidade – implica a ideia de uma verdade objetiva como um padrão que talvez não possamos atingir, mas, ainda que não possamos alcançá-la, por ora, se nem ao menos a estivermos buscando, nossa empreitada científica, e jurídica, terá sido em vão, e inútil.

Sem a ideia de verdade, não há ciência, e a racionalidade já está condenada. Aí está a inteligência suprema do Mestre. Antes de Jesus a Verdade não era conhecida. Agora, que nele não crê, não crê na Verdade, e, por isso, já está condenado, porque prefere suas próprias verdades àquela que é a condição da inteligibilidade de tudo o que existe. Assim, no julgamento final, quando consideradas todas as coisas, a totalidade da qual participamos, na Verdade, tudo acaba por ser revelado, e nada, senão a verdade, permanece de pé.

O aparato observador Jesus Cristo, com seu corpo, suas ideias, sua vida, seu modo de participar na totalidade do mundo, e modificando-o, o qual integramos em sua unidade indivisível, é o próprio critério de Verdade, ele é a medida da Justiça, é o instrumento pelo qual Deus, o Logos, habilitou a consecução da autêntica democracia no bojo do exercício de toda e qualquer função estatal, na qual, na Ekklesia, na realização do Reino, significou a própria expressão normativa, o conceito ou o princípio jurídico conforme sua realidade concreta no Reino de Deus.

Pois Deus não enviou o seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele. Quem nele crê não é julgado; quem não crê, já está julgado, porque não creu no Nome do Filho único de Deus. Este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque as suas obras eram más. Pois quem faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que suas obras não sejam demonstradas como culpáveis. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se manifeste que suas obras são feitas em Deus” (Jo 3, 17-21)